Maribel Torres cruzou a fronteira entre o México e os Estados Unidos a pé para, nas suas palavras, realizar o sonho de "encontrar aqui as partes do corpo que me faltavam".
Foram três dias de viagem entre a casa da família, em Oaxaca, e a fronteira, e mais uma semana caminhando pelo deserto até a Califórnia.
No meio do percurso, contou Maribel à BBC Brasil, o grupo de cerca de dez pessoas se recusou a avançar e foi abandonado pelos "coiotes", como são chamados os "guias" de imigrantes ilegais.
Por sorte, os retirantes viajavam em dois grupos e o de Maribel foi encontrado pelo que vinha atrás. "Foi bem difícil fazer essa travessia", disse a jovem de 25 anos, que tinha 19 à época. "Vir para um lugar onde você não conhece nada, não sabe o que vai acontecer, não sabe se vão te prender ou deportar."
Arriscar a vida foi o preço que a mexicana transgênero decidiu pagar para "fugir do estigma, fugir da família e da não aceitação, fugir de um lugar de onde as pessoas metem o nariz na vida dos outros", relembrou. "Amo o México, porque é o meu país, mas os EUA me deram o que México nunca me deu."
Em meio a chocolate quente, tamales - pamonhas de milho recheadas com carne de porco - e outras iguarias típicas de alguns países latino-americanos, ao som de mariachis e após uma missa celebrada em espanhol para devotos da Nossa Senhora de Guadalupe, ela está em casa nesta igreja na capital americana, Washington.
Há 45 anos a chamada Igreja das Comunidades Metropolitanas (ICM) abre os braços para lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT), mas é a primeira vez que a sua sede em Washington realiza uma missa em espanhol com o objetivo específico de atrair os latinos entre eles.
"Para a comunidade latina, isto ainda é uma grande novidade", afirmou o reverendo Jorge Delgado, "porque as festividades tradicionais normalmente ficam sempre em segundo plano quando as pessoas deixam o seu país".
'Saindo do armário'
Mas a novidade é também sinal de uma tendência de latinos assumirem sua sexualidade cada vez mais abertamente nos EUA, um fenômeno que as mudanças na demografia e nas gerações explicam.
À medida que os filhos dos imigrantes de países latino-americanos ganham espaço na sociedade americana, as atitudes de uma parcela da população tradicionalmente classificada como conservadora também se transformam - rapidamente.
Uma pesquisa do instituto Pew Religion, por exemplo, mostrou que, tão recente quanto em 2006, 31% dos latinos apoiavam ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, enquanto 56% se opunham à ideia.
Neste ano a equação se inverteu: 52% são favoráveis e 34%, contra. Mesmo entre os hispânicos católicos a visão pró-casamento gay já é maioria.
Eduardo Mercado, representante da organização Dignity Grupo Latino, que atua pelas comunidades LGBT latinas de fé em Washington, disse à BBC Brasil que pouco a pouco a mudança de atitude dos hispânicos passa a incluir também um aspecto central da cultura latina, a religião.
"Agora os latinos estão compreendendo que não precisam separar a sua fé e a sua sexualidade", disse.
"À medida que eles começam a entender melhor os seus direitos civis, percebem que esses direitos também se aplicam à fé", acrescenta.
Para Mercado, ". Entendemos melhor quem somos e qual é o papel da religiosidade nas nossas vidas. Não é porque algumas pessoas dizem que não podemos celebrar (a fé) que não vamos celebrar".
Homofobia
Mas a hesitação dos latinos em embarcar nessa tendência está enraizada em uma profunda história de homofobia em casa. Em 2011, dos 248 assassinatos só de transgêneros compilados mundialmente pelo projeto Trans Murder Monitoring Project, mais de 80% - 204 - foram na América Latina.
Sozinho, o Brasil responde por mais de 100. E as entidades de direitos humanos ressalvam que apenas os casos mais notórios são contabilizados.
A vida nos EUA traz mais segurança física e psicológica, mas mesmo assim muitos latinos "saem do armário em inglês, mas não em espanhol", dizem as entidades: assumem sua homossexualidade na sua "vida americana", mas ocultam esse fato na tradicional vida familiar.
O pastor sênior da ICM de Washington, reverendo Dwayne Johnson, prestava assistência à igreja de Monterrey, no México, quando trabalhava na igreja de Houston, Texas. Ele disse que sua experiência lhe permitiu ver de perto como "a dinâmica e as pressões da família" agiam sobre indivíduos LGBT latinos.
"Muitas vezes, quando os fiéis vinham para missa, você podia ver o sentimento de alívio e de liberdade, de ter algumas horas em que eles podiam ser eles mesmo", contou o religioso. "Aqui nos EUA é fácil dar isso como fato consumado, mas em Monterrey era como se as vidas deles dependessem daquilo."
'Não ao pecado, sim ao pecador'
O que não significa que, mesmo nos EUA, os indivíduos LGBT possam expressar sua religiosidade sem preocupações. Muitas paróquias operam, não oficialmente, a política do "não pergunte, não conte", ou, como diz Eduardo Mercado, uma condescendente abordagem de "odiar o pecado, amar o pecador".
Antes de frequentar a ICM de Washington, Maribel disse que ia às missas em outra igreja em Maryland, "mas apenas para escutar a missa, porque não havia a possibilidade de fazer parte dela".
"Ainda é difícil encontrar uma igreja te aceite e diga que você é bem-vindo", relata a mexicana, que se define como católica praticante e devota dos "santitos" que mantém em casa.
Nos EUA, a ICM, criada em 1968, é uma igreja congregacional alinhada com o protestantismo tradicional. Mas Maribel entende que as diferentes denominações religiosas são menos importantes, e que ser cristão é mais que nada "levar a palavra de Deus".
"Outras igrejas querem que a gente mude a nossa aparência física", diz, "mas eu acho que a mudança é interior". BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.
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